A ética do detetive

Renata Fernandes Magdaleno

No presente trabalho procuro mostrar que os detetives dos romances policiais contemporâneos costumam apresentar uma ética própria, que questiona princípios comuns e está baseada no confronto com o outro. Os conceitos de certo e errado passaram a não ser tão rígidos, como nos textos policiais de enigma, e variam de acordo com a situação.

In this paper I argument that detectives of contemporary detective’s stories use to present a particular ethic, and that isn’t based in universal concepts, but in the confront to the other. The concepts of wrong and right aren’t so straight; they vary according to the situation in the detectives’ stories.

Introdução

        Em 1996, o escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza, formado em psicologia e filosofia, lançava o seu primeiro romance policial, O silêncio da chuva. Nas páginas, ele descreve o delegado Espinosa, um policial ético, incorruptível, que passeia pelas ruas de Copacabana enquanto investiga mistérios e assassinatos. Espinosa foi batizado em homenagem ao filósofo de mesmo nome, autor de obras como A Ethica e O breve tratado sobre Deus, o homem e sua felicidade.
        Mas, enquanto o filósofo era adepto da razão, o delegado age constantemente de acordo com as suas emoções. Numa entrevista para o site Trópico, na Internet, o escritor afirmou que ele teve a preocupação de fazer do seu personagem principal um homem comum, com dúvidas e angústias, não um super-herói. Assim como os homens que circulam hoje pelas grandes cidades, o delegado, constantemente, se depara com dilemas éticos e dúvidas morais. E, na hora de resolver, em várias situações, opta pela emoção em vez da razão. São os sentimentos que nascem no embate com o outro que guiam seus atos.
        Os questionamentos de Espinosa são adequados ao tempo em que ele vive. A complexidade da vida moderna acabou por sofisticar também os problemas morais. No texto Ética e intelectuais, os autores Domenic Rainsford e Tim Woods, afirmam que a ética nada mais é do que a investigação dos sistemas morais que guiam a rotina das pessoas. E todos os questionamentos que os homens precisaram enfrentar na vida moderna, acabaram influenciando na transformação destes fatores.
        Foram fatos como a perda da personalidade com uma essência imutável, como acreditavam os iluministas e a falência das grandes narrativas, que justificavam a vida e o mundo que contribuíram para a relativização de conceitos. Para que tudo passasse por revisões e questionamentos, inclusive a ética.
        A partir da década de 90, houve uma retomada dos estudos éticos, que passaram os anos 70 e 80 negligenciados. A ética desenvolvida por Kant, baseada na razão e em conceitos de certo e errado universais, passa a ser questionada e rechaçada por muitos estudiosos da área. Para este filósofo, o que era bom ou mau estava definido, como leis, regendo a vida na sociedade.
        David Parker, no texto “A volta da ética nos anos 90”, afirma que Kant defende uma ética de todos, ligada ao racional, sem espaço para sentimentos morais, como virtude e caráter, por exemplo. Mas, segundo Domenic Rainsford e Tim Woods, os últimos anos assistiram ao surgimento de novas teorias no setor e os filósofos passaram a ter que considerar e pensar a existência de conceitos de bem ou mal individuais. Em vez de leis universais, julgamentos pessoais, que poderiam variar de um indivíduo para outro.
        A ética que surge na segunda metade do século XX reforça este tipo de questionamento, já que chega impregnada por problemas pontuais, movimentos políticos que tratam dos direitos de minorias, preocupados com questões como raça, classe ou sexualidade.
        Conceitos desenvolvidos por filósofos como Foucault, Lacan e Derrida passam a ser aplicados em projetos relacionados a pequenos grupos, que lutam contra fatores como a opressão e a marginalização. O surgimento de movimentos como estes levanta dúvidas, portanto, sobre a existência de um sistema ético único, já que parece falar só de alguns.
        Simon Haines, em “A linguagem da ética e a linguagem da literatura”, ressalta, ainda, que muitos filósofos hoje se preocupam em produzir uma ruptura com o pensamento ético do passado, mas, para ele, o ideal seria apenas iluminar regiões que permaneciam escuras. Desta forma, separar o tema entre certo e errado seria achatá-lo, deixando de lado toda uma série de emoções e desejos que precisam ser levados em conta numa análise ética. Nuances como a vergonha, a modéstia, a arrogância e a integridade.
        A figura do detetive acompanhou, ao longo dos anos, as mudanças na rotina urbana e os problemas presenciados pelos moradores das grandes cidades. Assim como aconteceu com o homem comum, a vida moderna trouxe uma gama maior de preocupações e condutas morais para este personagem. Questionamentos éticos não existiam nos primeiros investigadores da história, os detetives dos romances de enigma, adeptos da razão e sem nenhum espaço para sentimentos ou dúvidas.
        Edgard Allan Poe inaugurou o romance policial em 1841, ao publicar na Graham’s Magazine Filadélfia Os crimes da rua Morgue. Nas páginas do conto, o protagonista Dupin imortalizava a figura do detetive clássico dos textos de enigma. Sem ter a personalidade descrita com detalhes, ele aparecia como uma figura absolutamente racional, cujas faculdades mentais analíticas eram tão desenvolvidas, que conseguia desvendar um assassinato sem sair da poltrona de sua casa, por puro hobby. E, no fim, a solução chegava sempre, consoladora. A identidade do criminoso era revelada e, o equilíbrio restabelecido.
        Dupin não parece ocupado com sua conduta ética. Ele é extremamente racional e só está preocupado em desvendar um enigma. Na sua cabeça, tudo está claro: o criminoso é um mal que precisa ser detido. Segundo Carl Schorske, em A idéia de cidade no pensamento europeu de Voltaire a Spengler, os centros urbanos, que eram vistos pelos iluministas como locais de virtude, surgem sob o estigma dos vícios sociais depois da Revolução Industrial. O detetive, portanto, aparecia nas narrativas do gênero como um remédio, capaz de acabar com os males desta cidade do vício. Suas características, preocupações morais e gostos eram apenas esboçados, até porque tudo estava definido, com rígidos conceitos de certo e errado, como leis que regiam a sociedade.
        Na década de 90, todo o mundo assistiu a um boom de livros do gênero. As narrativas de crimes e mistérios encontram fôlego renovado. Segundo Denise Góes, num artigo publicado na edição número seis da revista Entre Livros, na França, de cada cinco volumes vendidos, um é policial. No Brasil, a Companhia das Letras estima que sejam editados cerca de 150 publicações do gênero todos os meses. E, em entrevistas publicadas em suplementos literários, autores afirmam que, hoje, os textos policiais têm feito uma crônica da vida na cidade, falando dos problemas e males dos indivíduos. Michael Connelly, por exemplo, criador do detetive Hieronymus Bosch, disse numa entrevista para o caderno Prosa & Verso, publicada em dezembro de 2004, que, para ele, o gênero se tornou o instrumento por meio do qual o escritor pode investigar, explicar e espelhar qualquer aspecto ou doença de nossa sociedade, inclusive os questionamentos éticos.
        Justamente por isso, os detetives das narrativas atuais estão mais próximos ao homem comum, com personalidade fragmentada e discutindo questões recorrentes da vida numa metrópole. Em todo momento, ele se depara com situações onde precisa decidir o que é certo ou errado e suas escolhas são, muitas vezes, questionáveis.
        No presente trabalho procuro mostrar que os detetives dos romances policiais contemporâneos costumam apresentar uma ética própria, que questiona princípios comuns e está baseada no confronto com o outro. Os conceitos de certo e errado passaram a não ser tão rígidos, como nos textos policiais de enigma, e variam de acordo com a situação. Analisarei, portanto, o delegado Espinosa, criado por Luiz Alfredo Garcia-Roza, em trechos dos romances Perseguido e Uma janela para Copacabana, fazendo uma comparação com a ética de Dupin, o detetive de Edgard Allan Poe, em A carta roubada.

1– Dupin e o mundo do certo e errado:

        Sandra Reimão, em O que é romance policial, define os textos policiais clássicos como uma narrativa onde há sempre um mistério a ser desvendado e, no fim, a solução aparece, indiscutível. Para ela, a narrativa de enigma atua na esfera do raciocínio quase matemático, enquanto o noir lida com o viver, percebendo criticamente o mundo. A história da investigação é o que importa para o leitor dos textos clássicos, que se depara com um verdadeiro jogo de dedução. O criminoso é visto como alguém que cometeu um mal. Ele acabou com a ordem, com o equilíbrio, e precisa ser desmascarado. Ao detetive, cabe a boa atitude de desvendar o mistério e restabelecer a tranqüilidade.
        Como a trama dedutiva está baseada no raciocínio matemático, não há espaço para o acaso e as emoções, tudo é racionalmente estabelecido e previsto. No policial clássico não há como o protagonista deixar de ser visto como o mocinho e o criminoso como o vilão.
        Em A carta roubada, de Edgard Allan Poe, Dupin é procurado pelo chefe de polícia de Paris, que quer sua ajuda para desvendar o sumiço de um documento. O ministro D. teria roubado uma carta da casa de G., que presenciou a cena, mas nada pôde fazer para evitar, já que estava recebendo ainda outro convidado.
        Adivinhando o conteúdo do envelope que estava em cima da mesa, D. tira uma carta do bolso, finge lê-la, a coloca exatamente em cima da outra e, depois de alguns minutos de conversa, apanha a que não lhe pertence. O ministro usa a informação contida no documento para fins políticos e, G., desesperada, pede ajuda ao chefe de polícia, que, depois de muitas buscas à casa do ministro, nada encontra e recorre a Dupin.
        O detetive ouve toda a história da poltrona de sua casa e deduz que o documento deve estar num local óbvio, bem à vista de todos e, por isso mesmo, passa despercebido. Ele resolve, então, visitar o ladrão. Dupin localiza o documento em cima de uma escrivaninha, coloca o envelope dentro do bolso e deixa outra carta parecida no lugar.
        A atitude de Dupin é exatamente igual a do ministro. O detetive repete passo a passo os atos do criminoso. Por que, então, um seria visto como um monstro sem moral, enquanto o outro, cumprimentado por sua atitude? Em momento algum da história, os envolvidos questionam os motivos que levaram o ministro a roubar a carta. Se houve um crime, não há justificativa possível que inocente o responsável. A partir do momento em que a identidade do criminoso é revelada, sua culpa está estabelecida e não há mais volta.
        D. é um criminoso, que acabou com a harmonia de um ambiente. Dupin, em contra partida, teria devolvido a carta ao seu verdadeiro dono, punindo quem agiu errado e aplicado a justiça. O detetive faz o que devia ser feito. O seu roubo não é visto como uma manobra não ética. Em momento algum o detetive tem dúvidas morais. Está tudo bem definido entre o que é certo e o que é errado.
        Simon Haines, em “A linguagem da ética e a linguagem da literatura”, afirma que a ética desenvolvida por Kant defende que o pensamento moral começa com princípios normativos universais. O mundo é descrito através da razão, com uma linguagem científica, deixando de lado qualquer resquício de emoção, desejos ou sentimentos.
        Segundo Haines, a ética de Kant resumiria tudo em duas leis básicas: o que é bom e o que é mau. E estes princípios valeriam para todos os homens. O texto de enigma trabalha também com a razão pura, sem espaço para sentimentos e emoções que tragam reviravoltas à história. E a ética de Dupin se relaciona com os princípios kantianos. Está tudo muito claro: o criminoso quebrou a ordem, enquanto, ao detetive, resta restabelecê-la. Conceitos de bem e mal muito bem estipulados regem o mundo do detetive de Poe.

3 – “A Ética de Espinosa”:

        Numa entrevista para o jornal O Globo, publicada em 2003, no caderno Prosa & Verso, o escritor Garcia-Roza afirmou que, na hora de criar o delegado Espinosa, sua intenção foi fazer com que sua personalidade se aproximasse da do indivíduo comum.
        Espinosa se acostumou a conviver com uma polícia corrupta. Tiras desonestos, propinas e interesses escusos fazem parte do seu dia-a-dia. Mas ele se mostra sempre pouco à vontade com este clima e são freqüentes os momentos em que o policial aparece pensando em largar a profissão, se aposentar. Em quase todos os cinco livros que protagoniza, ele vive momentos em que pensa que seu fim profissional está próximo.
        Em Uma janela em Copacabana, o contraste entre o seu caráter incorruptível e a corporação em que trabalha aparece claro. No livro, o investigador é responsável por desvendar a morte de três policiais em locais públicos de Copacabana. Ele descobre que os tiras morreram porque comandavam um esquema de propinas e estavam sendo desonestos na distribuição. Durante a investigação, Espinosa e seus dois fiéis funcionários, Weber e Ramiro, encontram dificuldades em apurar os fatos e entrevistar testemunhas, pois nenhum policial quer ajudar na investigação, com medo de perder os benefícios que recebe. Já que é impossível ir contra todo um sistema estabelecido, Espinosa decide simplesmente fazer o seu trabalho da melhor maneira possível. Sua tarefa é desvendar as mortes e não prender profissionais desonestos.
        Mas, apesar de incorruptível, Espinosa é um homem comum, como os muitos que circulam pelas ruas das grandes cidades. E, constantemente, ele se depara com dilemas éticos e, muitas vezes, sua atitude pode ser interpretada como moralmente duvidosa. Mas ele costuma parar para pensar nos seus atos, analisando se o que fez estava certo ou errado, o que mostra que, para ele, os conceitos não aparecem como fatores universais. O delegado decide qual a melhor atitude a tomar quando a situação se apresenta.
        Espinosa mora sozinho no Bairro Peixoto e, há dez anos, se separou da esposa. Em Uma janela em Copacabana, o delegado é chamado para conversar com Serena, uma testemunha chave para a investigação dos crimes. Moradora do Leme, solitária, com um marido diplomata que está sempre viajando, Serena vê quando uma mulher é jogada da janela do prédio da frente. Ela procura o investigador para dar o seu depoimento e, mais do que ajudar o caso a ser desvendado, a moça quer aplacar com o investigador os seus momentos de solidão. Ela se entrega ao delegado, que nem pensa em resistir. Depois do encontro amoroso, porém, ele se confronta com suas dúvidas. Pensa nas dificuldades de se estabelecer uma ética do comportamento sexual e resistir a uma linda mulher.
        Simon Haines, em A linguagem da ética e a linguagem da literatura, afirma que, durante a retomada dos estudos da ética na década de 90, muitos filósofos quiseram promover uma ruptura radical com o passado, classificando como ultrapassada a visão de outrora. Haines, porém, afirma que é preciso analisar a forma como os homens agiam no mundo, seus valores morais e sua ética. Para ele, todas as vezes em que pensamos no que é certo e moralmente aceito, acabamos nos deixando influenciar por resquícios do passado, traços culturais que compõe nossa personalidade. Seria, portanto, preciso rever o passado para entender as questões de hoje.
        Da mesma forma, Espinosa revela, através de seus pensamentos, que se deixou levar pelo instinto quando cedeu à tentação de dormir com Serena. Usa uma idéia machista, de que o homem não consegue e nem deve resistir a um apelo feminino, para justificar o seu ato. Desta forma, deixa transparecer traços da cultura em que vive presentes na sua personalidade, que acabam por influenciar a sua forma de agir. Ele admite que seu comportamento encontra eco numa idéia vigente na sua sociedade.
        Mas, ao mesmo tempo, Espinosa reconhece o seu erro e pensa sobre uma ética das relações sexuais, que, para ele, não é formada por conceitos definidos e rígidos e depende de uma série de nuances emocionais que interferem nas atitudes humanas. As dúvidas se justificam, afinal, ela era testemunha de um crime.
        A ética de Espinosa aparece refletida também na forma como os livros terminam. Os finais aparecem sempre em aberto, sem uma solução definitiva. Em Uma janela em Copacabana, por exemplo, o investigador suspeita, no fim, que Celeste, a principal testemunha, é a assassina dos policiais. Mas ele admite que suas idéias são apenas suposições. Nada é definitivo.
        Em Perseguido, Espinosa descobre a identidade do assassino, mas também não desvenda todos os mistérios que aparecem na trama. O leitor termina o livro sem saber se as perseguições que o psiquiatra relatava eram apenas fruto da sua mente perturbada.
        O filósofo Hillis Miller defende que uma ética da leitura teria a ver com uma relação do texto com algo que está fora deste. Ao leitor cabe uma atitude de humildade na hora de ler o que está escrito. Ele precisa ter em mente que nunca atingirá a verdade, já que é impossível chegar ao texto original, descobrir as reais intenções do escritor na hora de escrevê-lo. O autor também. No ato da escrita, ele pode imaginar e prever a presença de um leitor, mas nunca terá certeza da forma como este interpretará o que está sendo dito. Isso marca uma lacuna de ilegibilidade presente em todo texto. E, é bom frisar, que, texto, pode significar qualquer coisa, os atos de outra pessoa, por exemplo, e não apenas um livro.
        Desta forma, Espinosa procura adotar uma atitude ética na hora de interpretar os atos dos criminosos e os acontecimentos. Como ele tem consciência da impossibilidade de se chegar a uma verdade, apresenta apenas as suposições, deixa claro que tudo não passa de uma interpretação. Ele deixa dúvidas no ar, um espaço para que o leitor também tenha as suas próprias idéias em relação ao que foi contado.
        No fim de Perseguido, Espinosa se depara com outro dilema ético. O livro conta a história de um psiquiatra, que entra em contato com o investigador para denunciar um paciente que o está perseguindo. No decorrer da história, o leitor é levado a suspeitar que tudo não passava de paranóia do médico. O desequilíbrio do doutor se agrava e acaba por desestruturar a família inteira e resulta na morte de quase todos os seus componentes. No fim, a filha mais velha, Letícia, mata o próprio pai. Ela ficará no hospital até melhorar do choque e, depois, estará livre, sob os cuidados de algum familiar.
        Espinosa descobre a identidade do assassino do médico, acha a arma do crime, mas prefere esconder o revólver, por acreditar que a menina foi apenas uma vítima das circunstâncias. Quando um de seus ajudantes pergunta o que acontecerá com a assassina, o delegado não tem dúvidas: declara que não tomará atitude alguma. Para ele, a vida já se encarregou de punir a garota de todos os seus erros.
        Segundo o filósofo Emmanuel Levinas a base da ética pode ser caracterizada pela figura de dois rostos, que se reconhecem como estranhos ou semelhantes. Essa diferença gera respeito entre os dois e é justamente ela que funda a ética. Porque quando você vê apenas o semelhante, acaba por excluir o outro, como se apenas se visse, um olhar diante de um espelho. Para Levinas, o indivíduo só pode se identificar e se comunicar com o outro abrindo mão de si mesmo.
        Esta visão do filósofo se relaciona com a idéia de Blanchot sobre a amizade. Para este, ser amigo significa abrir mão do que você é, morrer um pouco na presença do outro. E é isso o que acontece com Espinosa. Ao longo da história, ele se encontra várias vezes com Letícia, se comove com o drama da menina e, muitas vezes, ultrapassa o mero trato profissional. O investigador se preocupa com ela, a trata como amiga. Na hora em que ele toma a decisão de esconder a arma do crime e isentar Letícia da punição pelo assassinato do pai, abre mão do seu papel, de seguir uma conduta correta de policial em nome do outro.
        Segundo os princípios de Dupin, Espinosa teria deixado de cumprir seu dever, não restabeleceria a ordem, de acordo com uma das importantes premissas do romance policial de enigma. Mas o delegado não se deixou levar pela razão, foram as emoções que guiaram os seus atos. Ele se deparou com um dilema ético: denunciar Letícia ou não. E resolve poupar a assassina, analisa o caso e se deixa levar pelas emoções, negando qualquer princípio de certo ou errado preestabelecido.

3 – Conclusão:

        Quando fez de Espinosa a imagem e semelhança de um morador das grandes cidades nos dias de hoje, Garcia-Roza se deparou com uma complexa gama de questionamentos morais fazendo parte da personalidade do seu detetive. Classificá-lo como um indivíduo ético não é uma tarefa simples, já que a ética do delegado não é baseada em conceitos rígidos e definidos de certo e errado.
        Uma sofisticada gama de nuances emocionais interferem nas atitudes éticas do policial. Dominic Rainsford e Tim Woods, no texto “Ética e intelectuais”, definem que esta está estritamente relacionada com uma preocupação com o outro. Espinosa está em constante confronto com o outro e é este reconhecimento da diferença que gera o respeito e guia os relacionamentos que constrói. É baseado nas emoções que emergem do contato com o outro que ele decide, por exemplo, como agir em relação a Letícia. E é admitindo uma lacuna intransponível entre o eu e o outro, que torna impossível o estabelecimento de uma verdade, a descoberta das intenções originais do criminoso, que ele deixa a maioria dos seus casos em aberto. Nunca é possível reunir provas suficientes para se chegar à verdade absoluta dos fatos. Simplesmente porque, para o policial, não existe uma verdade absoluta.
        Ao longo dos livros, Uma janela em Copacabana e Perseguido, é comum Espinosa falar da ética profissional, a ética dos relacionamentos amorosos, a ética das relações sexuais. Para ele, não há uma única ética, ela é fragmentada. Assim como o indivíduo pós-moderno possui uma personalidade diferente para cada situação do dia-a-dia, ele procura analisar os comportamentos éticos apropriados para cada setor da vida.
        A personalidade de Espinosa exemplifica a sofisticação de questionamentos morais que atingiram os homens na vida moderna. Os conceitos de certo e errado universais, que regem a filosofia racional desenvolvida por Kant, não dão conta de toda a gama de sentimentos que passaram a ser levados em conta nos estudos do tema.
        O detetive Dupin, de Edgard Allan Poe, serve de contraponto, para ressaltar a personalidade complexa de Espinosa. A estrutura baseada na razão do romance de enigma, faz com que a ética do detetive se limite a conceitos de bem e mal pré-estabelecidos. Os sentimentos e razões do criminoso não são levados em conta, apenas a sua atitude. Roubar uma carta é classificado um ato amoral e, por isso, ele é definido como um monstro horrendo, que, apesar da posição social, é completamente sem ética. O detetive é encarregado de restabelecer a ordem e, mesmo que tenha que repetir os atos do ladrão, seu desempenho não é considerado antiético, já que se baseia em conceitos de justiça.

Renata Fernandes Magdaleno é mestranda em literatura brasileira pela PUC-RJ. Sua tese de mestrado aborda as representações do Rio de Janeiro nos romances policiais brasileiros, revelando que cidade é essa que aparece nos livros de mistério. Recentemente, publicou, no caderno Prosa & Verso, do jornal O Globo, o artigo "Gênero com nuances próprias", em 04 de fevereiro, de 2006. e-mail: renata.magdaleno@gmail.com

Referências:

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